ANEXO 2
Contribuições dos Conselhos para fazer o ESG acontecer nas empresas
Nelmara Arbex – Sou física de formação, tenho doutorado em Física Teórica e dois pós-doutorados. Morei cinco anos na Alemanha por isso e depois voltei para o Brasil já com dúvidas sobre como causar impacto no mundo em que vivemos através daquele mundo acadêmico. Na época, os físicos qualificados trabalhavam no projeto genoma, se envolviam com agências internacionais de pesquisas ambientais e poucos iam para o mundo dos negócios. Eu acabei indo parar na McKinsey, como associate consultant generalista. Isso foi ótimo para a minha formação profissional. Participei de projetos em várias áreas e setores e fiz um pouco de tudo: estratégia, gestão, inovação, logística, governança e até e-commerce, que na época era uma novidade. Depois de um tempo, percebi que adorava aprender sobre o mundo empresarial, sobre o poder que empresas tinham e tem para esculpir a sociedade, mas o que eu queria fazer não era aumentar o lucro de empresas, apenas. Estávamos no começo da década de 2000, quando no Brasil surgiram as ONGs que conhecemos hoje, nessa época apareceu o Instituto Ethos, e muitas empresas com as quais tive contato na McKinsey começavam a participar de novas agendas empresariais na sociedade, isso me interessava.
Candidatei-me para liderar uma área nova no Instituto Ethos. Fui estruturar a área de conhecimento e treinamento. Desenhamos e ajudamos a implementar o primeiro mestrado de responsabilidade corporativa da FGV, através do CES (Centro de Estudos de Sustentabilidade). Ali comecei a entender a agenda global em torno das práticas sustentáveis para os negócios. Depois de alguns anos no Ethos, entrei em um processo de seleção para estruturar e liderar primeira área de responsabilidade corporativa da Natura – que, por incrível que pareça, em 2003 ainda não tinha essa área. Pensar nisso me faz refletir como essa agenda cresceu desde então! Foi novamente uma experiência muito rica, a liderança queria muito que a empresa fosse inovadora (não havia muitos exemplos e sequer legislação específica em áreas críticas para a empresa) e a empresa permitia que nós ousássemos. Os três principais acionistas estavam muito interessados, participavam dos conselhos, pediam opinião dos times e depois de três anos a área ficou muito grande, deu muito certo, já tínhamos projetos nacionais e o diferencial de posicionamento e comprometimento da empresa eram claros. Nesse período criamos sistemas de controle de gestão (ESG diríamos hoje), incluímos os temas da agenda da sustentabilidade no ciclo do planejamento, tínhamos um comitê de sustentabilidade -com acionistas, CEO, líderes das áreas, líder de planejamento -que se reunia mensalmente e impunha um ritmo fantástico em todas as áreas, tínhamos campanhas nacionais pela alfabetização através das consultoras, calculávamos a pegada de carbono de embalagens, enfim, muitas iniciativas inovadoras na época. Até criamos um programa de formação de gestores que tinha como base um filme para crianças, “Monstros S. A.”! Tínhamos muita liberdade e há profissionais da época que se lembram desse curso. Mas, percebi depois de um tempo que, conforme éramos bem sucedidos, os processos se estabeleciam e a estrutura da empresa passou a parecer um impedimento para continuarmos “ousando”. Fui então procurar experiências internacionais.
Assim, candidatei-me e em 2006 comecei, em Amsterdam a trabalhar para a Global Report Initiative[1], que produzia as diretrizes relatórios de sustentabilidade, que definia indicadores definidos em processos multistkeholders[2] globais para criar uma linguagem internacional para falar da gestão disso tudo. Meu primeiro projeto foi criar uma rede global de organizações que oferecesse treinamento seguido as diretrizes. Depois de dois anos, já tínhamos parceiros em mais de 30 países. Me tornei vice-presidente global (Deputy CEO) e fiquei na GRI até 2016. Nesse período também liderei o processo global de revisão das diretrizes (GRI G4) e criei uma área para envolvermos a rede global na discussão de tendências para sustentabilidade e reflexos no relato empresarial. Em 2015 fundei a minha empresa de consultoria, Arbex & Company. Além de clientes de vários setores e países, fui chamada para dar aulas no Boston College, onde leciono até hoje.
O contexto histórico do surgimento do ESG. Suas raízes na Declaração dos Direitos Humanos.
Nelmara Arbex – O ESG (Environment, Social and Governance) não pode ser considerado meramente moda corporativa. A sustentabilidade é um movimento que já acontece há algumas décadas, um movimento pela qualidade de vida de todos. Para isso concluímos que também é necessário proteger os ecossistemas, que são a base para essa qualidade de vida. O significado dessa “qualidade de vida” na era contemporânea foi definido na Declaração Universal dos Direitos Humanos criada em 1948. Foi a primeira vez que se escreveu, em 30 artigos, o que significa qualidade de vida, em relação a direitos iguais par todos e acesso a moradia, trabalho, cultura, saúde, férias, entre outros tópicos. É uma agenda que, já em 1948, era inevitavelmente transformadora. Podemos dizer que o movimento atual de formular buscas por um desenvolvimento sustentável, tem esse marco importante que nos ensinou que tipo de qualidade de vida é necessário para sabermos se atingimos tal desenvolvimento. E, ao longo da história, muitos estudos e obras foram sendo produzidos para pontuar o caminho para a gente chegar nesse modelo. O livro “Primavera Silenciosa”, de Rachel Carson, considerado pela revista Times o livro mais influente dos últimos 100 anos. Editado em 1962, era a primeira vez que foi documentado o impacto da produção industrial e química sobre o meio ambiente e como o então aclamado progresso já apresentava consequências muito graves.
Na década de 1970 cientistas liderados por Donella Medows, escreveram “Os Limites do Crescimento”, demonstrando através de cálculos e modelos matemáticos que estávamos crescendo exponencialmente dentro de um sistema (o planeta) com recursos finitos. E, na década de 1980, o relatório Brundtland (“Nosso Futuro Comum”), coordenado pela então primeira-ministra da Noruega, Gro Harlem Brundtland, declarava que o mundo precisava encontrar um modelo sustentável de crescimento econômico para todos os países -considerando os limites do planeta, seus ecossistemas e o bem estar de todos os seres humanos- que solucionasse os problemas atuais como a eliminação da pobreza, produção e distribuição de energia, proteção aos recursos ambientais e também o controle da poluição e contaminação.
Na década de 1990 as empresas foram efetivamente chamadas para dar a sua contribuição na resolução desses problemas, na Eco 1992. Governos, especialistas e representantes da sociedade convocaram as empresas sob o argumento de que elas eram os centros financeiros, de conhecimento, de excelência e de talento e tinham que fazer parte do movimento de forma proativa, em vez de apenas esperar que a legislação estipulasse regras, o que em geral demora anos. CEOs muito importantes de grandes empresas mundiais deram depoimentos dizendo que, de fato, as corporações precisavam se antecipar aos governos.
Em 2006, as Nações Unidas, através de uma agência chamada Global Compact, criada para orientar investidores a considerarem esses aspectos quando avaliando empresas produziu um documento chamado “Who cares wins” – quem cuida ganha. É nesse momento em que aparece essa nova linguagem ESG (Environmental, Social, Governance), e investidores como os grandes fundos de pensão europeus começaram a repensar seus investimentos em relação aos direitos humanos e as emissões de carbono e começam a reduzir investimentos na indústria do petróleo. Uma tendência que só aumenta.
Hoje, em pleno ano de 2021, todos esses temas continuam relevantes. Estamos vivendo, no mundo corporativo, um momento importante nessa onda que começou há bastante tempo e hoje se sintetiza nessa grande efervescência em torno do termo ESG.
Mas, vale lembrar que a gestão de aspectos ESG são apenas uma parte do movimento “pela sustentabilidade do nosso modelo de desenvolvimento”. Nessa década, esse movimento será marcado pela regeneração dos ecossistemas e do tecido social, além da descontaminação. As empresas são críticas para a implementação dessa agenda, mas a gestão ESG não necessariamente vai garantir que sejamos bem-sucedidos como sociedade. Há empresas que implementam a gestão ESG apenas para mitigar multas, ou apenas para satisfazer regras dos reguladores. Ainda são poucas grandes empresas as que usam toda a cadeia de negócio a serviço da agenda do movimento – descrita acima – ou que re-desenham o modelo de negócios considerando esses aspectos.
A gestão ESG é um indicativo de como a empresa lida com os aspectos Ambiental, Social e de Governança (o que envolve a tomada de decisões e as diretrizes usadas nesse processo) e através disso contribui (ou não) para a solução dos problemas que temos hoje e quanto ajuda a esculpir um futuro inclusivo e com ecossistemas regenerados e protegidos.
Para implementar e garantir a agenda do movimento vamos precisar das empresas, dos cidadãos, dos governos, dos economistas, dos jovens, dos especialistas, enfim, de muita gente para fazermos a transição que precisamos em todos os setores.
Wanderlei Passarella – Penso que os conselheiros devem realmente ir fundo no conhecimento de questões éticas, ambientais e sociais críticas, como a questão dos créditos de carbono, porque é algo que já está colocado e que terá impacto nos negócios em curto prazo. Assim como o tema do aproveitamento e reuso de águas. Parece-me que começa um ciclo muito mais virtuoso agora, porque, na medida que os fundos procuram ter cotas de participação em empresas lucrativas e o público começa a ficar mais simpático à causa, muitos desses fundos passam a colocar investimentos nas empresas sustentáveis, que têm modelos de negócios diferenciados e a confiança do consumidor. Algumas dessas empresas são até disruptivas, porque estão desmantelando negócios anteriores – indústrias de cabos elétricos, por exemplo, resolvem problemas com baterias e cativam os consumidores, e os investidores enxergam muitas vantagens. O grande ponto de virada nesse momento tem sido os investidores darem chancela ao se manifestarem dizendo cada vez mais claramente que só aplicam em empresas que cumpram os quesitos do ESG. Na outra ponta, a tendência mundial é o consumidor ou cliente responsável valorizando bens e serviços de origem sustentável, regidos pela ética. Grande parte dos consumidores brasileiros ainda prioriza o aspecto utilitário do consumo, como opções e custo/benefício. Mas, na medida em que mais e mais consumidores percebem que a produção tem processo responsável, bem estruturado e os atendem bem, enxergam valor e vantagens, gostam de dizer que são clientes daquela empresa, veem que a empresa é estável e não vai quebrar, e aí está o que realimenta o negócio sustentável. O ponto de mudança em que estamos hoje pode trazer um parâmetro de mais perenidade do que as empresas que estavam iniciando o movimento lá atrás.
Nelmara Arbex – Todas as pesquisas mostram que, se os consumidores têm informações sobre os produtos, ainda que haja resistência em relação ao preço, se existir garantia de que o produto é mais responsável em relação a sua cadeia de produção, aos seus funcionários ou a algum aspecto crítico da sociedade, apresenta um benefício de algum tipo, escolherão esse. No Brasil, existe uma crença de que produtos sustentáveis são destinados a nichos de consumidores de elevado poder aquisitivo. Isso é resultado do posicionamento de marcas e da margem que se espera dos produtos. As feiras de empreendedorismo das periferias das grandes cidades brasileiras dão um show de negócios com foco nos aspectos sociais e ambientais de suas criações. Há consciência em todas as camadas sociais de que o consumo deve impactar positivamente o meio ambiente, ajudar certos grupos sociais e as nossas comunidades.
As questões éticas, sociais e ambientais estão cada vez mais presentes em toda a sociedade. Conhecer esses temas, para os conselheiros, é tão básico quanto conhecer benefícios fiscais ou regras de qualidade de produto ou serviço.
Dominar ESG será um diferencial importante para quem deseja desenvolver uma carreira como conselheiro.
Wanderlei Passarela – A essência do ESG veio para ficar. Mesmo que, no futuro, possa receber outra denominação e outra roupagem, deve fazer parte da estratégia da corporação. Não vai ser uma área estanque, separada, mas ao contrário vai permear a cultura da companhia com um todo, vai estar no bojo das decisões, vai integrar a qualidade total. O modelo de negócios que implanta essa filosofia vai dar o propósito da companhia, vai dar os termos da sustentabilidade, definir como descarta resíduos e como compra produtos que não agridam o meio ambiente, estabelecer os processos produtivos que tenham pouca pegada de carbono, ou são mais inclusivos, e enfim uma série de processos que são assuntos típicos de governança do conselheiro. Este livro ressalta, em vários pontos, que governar é dirigir e controlar. O ESG é uma abordagem estratégica da companhia, portanto o conselheiro que não conseguir entender os fundamentos que levam a companhia, em seus processos, a ser sustentável, não vai conseguir estar presente nessas empresas. Por isso é preciso, sim, se aprofundar em ESG, e a forma pela qual vai mergulhar nisso são os cursos, congressos e, internamente, vivenciar as empresas desde o início da implantação dos processos.
Nelmara Arbex – É preciso conhecer o contexto onde os negócios acontecem para poder ser um bom(a) conselheiro(a) e ajudar a definir a direção a seguir, a estratégia. O contexto muda e vai sempre mudar, o que exige dos conselheiros que estejam antenados. Este conteúdo que discutimos aqui serve um pouco para que o conselheiro chegue à empresa para a qual foi contratado para controlar e conheça, não só os controles financeiros e de auditoria, mas também pergunte sobre a conexão desse negócio com a realidade está acontecendo. Para isso, existem dezenas de indicadores que podem ajudar. Cada setor tem as suas questões já muito bem mapeadas. Por exemplo, o setor de produtos de consumo tem agora que pensar, além de outros temas, na composição e destino de suas embalagens: como fazer embalagens cujo descarte não impacte os campos, os rios e oceanos? Como vamos descartar celulares, refrigeradores e televisores? Quanto do lixão do Brasil é seu?
Por isso, cada conselheiro, dentro do seu setor, tem que ter esse olhar, e não só da questão ambiental, mas social também. É preciso considerar o que se pode fazer contra a pobreza, contra a discriminação, seja de gênero ou contra grupos que tenham sido historicamente excluídos de certos ambientes ou oportunidades. A palavra, para o conselheiro e do líder, é aprender. Aprender sempre.
Eu acredito que existe uma tendência irreversível de as empresas terem processos de gestão dos aspectos ambientais, sociais e éticos. É um movimento sem volta, como o da qualidade, porque se tornaram ferramentas básicas para lidar com a realidade que estamos descrevendo.
Wandereli Passarela – Quando deixei minha carreira de CEO, em 2013, não havia essa grande pressão do mercado de capitais para a questão do ESG. Os conselhos e conselheiros, na média, estão ainda um pouco perdidos – embora haja alguns bastante avançados – em entender qual é o impacto do ESG no negócio. Boa parte dos conselhos e executivos C-level de várias empresas pensa que, por não serem companhias de capital aberto e não estarem sujeitas a fundos de pensão e grandes investidores, não têm obrigações. Mas já estão começando a se preocupar qual será o impacto do ESG nas suas empresas. Pensando no que vem acontecendo desde 2013, a impressão que se tem, no mundo empresarial como um todo, é que alguma coisa está para mudar. Não se sabe direito quando virá, nem como vai funcionar. Mas eu apostaria que essa concatenação da pressão do mercado financeiro que se dá no capital aberto vai começar a fluir também para o capital fechado. O consumidor que observa produtos de escala vai começar a olhar também produtos com características sustentáveis.
Nelmara Arbex – Já é uma realidade os fundos de private equity, venture capital e capital semente (que entram em empresas de capital fechado), observarem o ESG nas empresas em que investem. A falta de gestão dos aspectos ESG é considerada fator de risco, ainda que se façam certas concessões no início dos negócios. A matriz de risco tradicional já tem há algum tempo aspectos éticos, sociais e ambientais como parte de suas avaliações, nas análises para qualquer investimento ou crédito.
Wanderlei Passarela – O meu sentimento, sobre essa questão, é de que o consumidor, o investidor e a própria consciência dos dirigentes, ao verificarem o aquecimento global, o surgimento de pandemias que tem a ver com a perda de florestas e base de apoio da biodiversidade, vão despertar para a mudança da estratégia como um todo. Tudo isso levará ao questionamento da estratégia do negócio, e redesenhá-lo para que seja totalmente sustentável. Ou seja, ter produtos com capacidade de regeneração, de os processos serem economicamente corretos, enfim todo o arcabouço que o ESG vem colocar. Por isso Nelmara, eu e mais dois especialistas estamos lançando um curso para empreendedores e conselheiros pensarem em como reposicionar estrategicamente seus negócios para fazer frente a essas demandas que estão acontecendo e vão ser fortes.
Nelmara Arbex – No caso do Brasil, é importante lembrar a regulamentação de mercado em geral, pensar nos mercados que são críticos para a geração de negócios fora do país e para atração de capital. Nesse momento, a União Europeia formaliza o seu plano de recuperação pós-covid, ele vem com uma série de princípios, políticas e monitoramento de aspectos sociais e ambientais para quem negocia com o seu mercado. A União Europeia é o segundo maior comprador da produção agrícola brasileira. Falta de alinhamento com essas diretrizes – liberando uso de agrotóxicos ou transgênicos, por exemplo, ou nos transformando em emissores de gases do efeito estufa e não absorvedores, quando perdemos massa florestal – leva nossa economia para fora dos grandes e mais valiosos mercados. Além disso, o mercado de produtos orgânicos brasileiros cresce 25% ao ano, e no mundo cresce a taxas parecidas. A China, maior comprador de produtos agrícolas do Brasil, principalmente a soja, e Estados Unidos, o terceiro, logo depois da União Europeia, controlam rigorosamente a qualidade dos produtos que entram naqueles países. Imaginar que deixarmos de seguir essas tendências não acarretará em consequências serias para nossa economia e nossos negócios, é uma ilusão.
Atualmente, o Brasil corre o risco de perder acessos a fundos internacionais e programas por causa de desmatamento, incêndios e outras agressões ao meio ambiente que causam emissão e não absorção de carbono. Isso é a destruição de uma vantagem competitiva que quase nenhum país tinha. Agora, outros países vão migrando para matrizes limpas e tecnologias de absorção de carbono, e o Brasil vai – em algumas áreas – na direção oposta.
A China já está dando passos importantes: anunciou que será emissão zero de carbono em 2060. A Alemanha, quarta maior economia do mundo em 2020, já é movida em 60% por energias renováveis. Há dezenas de países que se comprometeram com emissões zero. Os dirigentes dos negócios, os guardiões do futuro das empresas, tem que saber disso e aconselhar de forma consequente.
As principais contribuições do Conselho para fazer o ESG acontecer no dia a dia da organização e sair apenas do discurso institucional.
Wanderlei Passarela – Vamos lembrar que os negócios disruptivos já estão entrando com novas tecnologias benéficas ao meio ambiente e à sociedade. Começa a haver uma confluência natural dessas tendências, o que é muito bom porque reforça todos esse processo. Por isso não cabe imaginar que um conselho possa delegar a um comitê a tarefa de dirigir e controlar os rumos da empresa. A não ser que um comitê seja formado dentro do conselho, como elemento de apoio para estudo e embasamento. Porque cabe a ele, conselho, pensar junto com os executivos como a empresa deve ir se colocando em estratégias que tenham no seu bojo o ambiente, a sociedade e a sustentabilidade, e ao mesmo tempo definir modelos de acompanhamento para garantir que o planejado se realize.
Já está dito neste livro que a cultura da empresa pode reforçar os avanços ou impedi-los (segundo Peter Drucker, “a cultura come a estratégia no café da manhã”). Principalmente na Europa e no Canadá, os conselhos estão cada vez mais voltados a pensar a cultura da companhia. No Brasil, essa ocupação é ainda incipiente e existe praticamente em poucas empresas de capital aberto. Mas ESG é, de alguma forma, estratégia e cultura organizacional, ambas embebidas dessa filosofia. O conselho tem esse papel importante.
Nelmara Arbex – Como o ESG está colado com a estratégia, o conselheiro que souber ajudar a empresa a navegar nesse contexto, vai ter uma vantagem enorme. Os conselheiros precisam entender que a questão “cultural” dentro de uma empresa é bem relevante, principalmente nos dias de hoje. Cultura empresarial e definida por uma seria de fatores, por exemplo: definição das habilidades a serem desenvolvidas, políticas de premiação, definição de metas, etc. O conselheiro pode fazer toda a diferença em ajudar a empresa a combinar a questão cultural com o contexto, incluindo questões sociais, ambientais e éticas, e de transparência, e de governança, no desenvolvimento dos mecanismos que criam a cultura e definem o futuro da empresa. Conselheiros assim devem ganhar “uma estrelinha” na hora da seleção.
Como conciliar um processo de tornar uma empresa ESG com uma possível pressão negativa de curto prazo nos resultados.
Nelmara Arbex – Vamos começar essa discussão perguntando: é aceitável piorar a qualidade dos seus produtos e serviços num momento de dificuldade dos negócios? Se você faz seus produtos ou serviços bem ou mal, isso é uma escolha, mas abrir mão de qualidade nunca é uma boa ideia. Ao contrário, a empresa tem que reinventar ou repensar ou seu negócio para continuar protegendo a sua reputação, a sua marca, ao mesmo tempo que enfrenta a crise. Exatamente isso vale para a gestão de aspectos ESG. Pensar na qualidade como se fosse um luxo, é uma armadilha, tanto para o executivo como para o conselheiro que pensa dessa forma. A reputação é um capital intangível e essencialmente é a qualidade da relação que a empresa tem com todos os seus públicos e com as expectativas que eles têm dela. Colocar esse capital em risco tem consequências profundas e de longo prazo.
Nesse momento, empresas como a Natura, o Magazine Luiza, as Casas Bahia, entre centenas de outras, estão nos ensinando o que é passar pela crise sem abrir mão de seus valores e da qualidade do relacionamento com seus públicos. Não há negócios que não seja permeado por questões ambientais, sociais ou éticas.
Wanderlei Passarela – Antes da chegada do William Edwards Deming, o pai da Qualidade Total, já durante a Segunda Guerra Mundial, acreditava-se que o produto melhor tem que ser mais caro. Com a descrença que recebeu em sua própria terra, Deming foi para o Japão e lá implantou a filosofia de que produto de qualidade inclusive tem menos custos. O Japão implantou o conceito e os produtos japoneses invadiram o mundo, com qualidade e bom preço. Quando o produto está intrinsecamente ligado à estratégia, à filosofia e à reputação colocadas pela companhia, vai trazer redução de custo, porque obteve melhoria do processo e do negócio.
Nelmara Arbex – É como uma bússola. É claro que se pode navegar sem, fingindo que não há campo magnético (ou que a competição ou transformação de mercados e contexto não existem). No contexto em que estamos, a empresa precisa considerar esses elementos, não importa se faça chuva ou sol. Pode até dar uma paradinha, fazer uma curvinha, mas nunca perder a direção. O ESG é uma forma de alinhar o direcionamento da estratégia para poder navegar nas águas atuais.
Nessa jornada, a primeira coisa a esclarecer é que cumprir a lei não é sinal de um posicionamento estratégico em ESG. Ainda vemos em relatórios empresariais textos dizendo “cumprimos a legislação”, como se houvesse a opção de não cumprir. Isso não constrói posicionamento.
O posicionamento, a qualidade da liderança, se demonstra nos passos que se dá além disso. Vamos falar de aspectos sociais. Por exemplo: as empresas reproduzem ambientes de discriminação, tanto em relação à mulher quanto a vários outros grupos. Essa é a parte social do negócio, sobre o qual a empresa tem total controle. Se os dirigentes continuarem pensando que o melhor empregado é o branco formado em certas escolas, está condenando uma parte da população a um tipo de vida que tem consequências para todos nós, no futuro. A inclusão, dentro do ambiente corporativo, é crítica para conseguir melhorar a qualidade de vida da população brasileira, até em termos de saúde física e mental. Mulheres profissionais reconhecidas e com possibilidades de crescimento empurram suas famílias e suas comunidades na direção de acreditar nas instituições, e batalhar para que elas continuam funcionando, que tenham qualidade, que sejam inovadoras.
O mesmo vale para aspectos sociais na cadeia de fornecedores, tanto no que se refere a questões ou crimes ambientais e sociais.
Vamos adiante, falando de pobreza: todas as empresas concordam em pagar um salário mínimo definido em lei, mas todos sabemos que ninguém vive com um salário mínimo. Até isso contempla uma reflexão que deveria acontecer – muitas empresas operam mantendo miséria, no Brasil.
É possível liderar dessa forma, por muito tempo, hoje? É possível só querer dinheiro e não se importar com o que acontece como consequência das suas decisões?
O aspecto social do negócio não deve ser confundido com filantropia. Apesar de muito importante em certos contextos, é apenas uma parte ínfima do grande problema que deve ser enfrentado.
O crítico, no posicionamento da empresa nos aspectos sociais, é que o conselho e a direção executiva devem entender que cada decisão empresarial, seja ela qual for, tem consequências sociais e ambientais que fazem parte do negócio. Portanto, para cada decisão, é necessária uma análise para entender quem será atingido com os resultados e conseguir um jeito de fazer com que o impacto positivo seja muito mais relevante do que os eventuais prejuízos. Se a empresa escolhe treinar fornecedores, ou se decide estabelecer cotas para certos grupos, cada decisão vai influenciar de algum modo toda a sociedade.
Wanderlei Passarela – É o choque da polarização que estamos vendo hoje. Mas precisamos lembrar que o tema remete aos públicos da empresa, como as equipes internas, as comunidades, os fornecedores, os consumidores e os acionistas. Quando falamos de governança, e dizemos aqui neste livro que os stakeholders precisam participar e estar engajados no processo, quanto mais se perceber que isso tem valor, mais esse lado social vai ser reforçado nesses aspectos que a Nelmara levantou.
Nelmara Arbex – Claro que entendemos que o sucesso financeiro é um pilar fundamental, mas ele na verdade é resultado de muitas outras coisas. E são essas outras coisas que estão mudando. Se antigamente você tinha os fatores ABC que precisavam ser controlados para ter um resultado financeiro, hoje em dia você pode ter o ABC – se é que ainda não sumiu – mas tem mais o alfabeto inteiro.
Por isso a gestão ESG virou uma forma de medida da qualidade do time executivo e do conselho, do seu entendimento da realidade em torno dos negócios. Muitas empresas hoje fazem relatórios de sustentabilidade, relatórios ESG, por razões diferentes: uma empresa porque vai fazer IPO, outras porque tiveram muitos problemas no passado e agora querem mostrar que entenderam o recado, ou seja, todo mundo quer ou precisa mostrar que entende essa conexão. Ainda que os relatórios sejam uma ferramenta limitada para demonstrar todo o impacto – positivo ou negativo – que um negócio pode ter, ele eh um primeiro movimento no sentido de contar ao publico como a empresa se posiciona e monitora seu progresso em relação a esses tópicos.
Assim como as empresas que não digitalizarem seus negócios correm altos riscos de ficarem pelo caminho, podemos dizer o mesmo daquelas que não decidirem adotar o ESG.
Wanderlei Passarela – Penso que ainda não estamos conseguindo enxergar muito bem como vai ser este século 21. Pandemia, aquecimento global, polarização política, uma série de coisas até negativas, do ponto de vista de transformação. Mas quero reportar um evento que teve um grande impacto para mim. Ainda na vida executiva, eu tinha uma reunião, na segunda-feira de manhã, na Áustria, com um fornecedor importante da empresa. Peguei um avião no sábado à noite, e domingo de manhã estava em Paris, num domingo chuvoso. Pensei em que poderia fazer até a hora do próximo voo e decidi visitar o Museu Nacional de História Natural. Tomei o metrô, pensando em passar umas duas horas no museu, já que conhecia o equivalente de Nova York. O resumo da história é que fiquei o dia inteiro naquele museu, porque ele é concebido numa arquitetura espiral e o caminho nos leva, contando a história da vida na Terra, chegando ao ápice, que é o ser humano. Percebi que haviam feito uma projeção de que, durante o século 21, a população mundial ia atingir algo entre 10 e 11 bilhões de pessoas, e ia parar de crescer. Nessas projeções, com as taxas de natalidade e de mortalidade, as áreas povoadas, as áreas densamente povoadas, tudo isso indicava que, pela primeira vez na história da humanidade, a população mundial ficará estagnada, e isso tem um impacto impressionante no mundo dos negócios: o mundo vai parar de crescer, pela primeira vez, desde que o homem surgiu no planeta. Então, o drive dos negócios, naturalmente, vai ser encaminhado para o que a Nelmara falou: a regeneração. Daí virá o valor. E a própria dinâmica de como o mundo funciona vai se alterar, talvez mais para o fim do século. Mas a regeneração precisa ser pensada agora, porque os negócios vão cessar de ter públicos cada vez maiores. Esse é um impacto significativo, que na minha visão corrobora a necessidade de termos que implantar o ESG agora.
Nelmara Arbex – As mudanças climáticas já são uma evidência muito forte de que não é possível para nenhum setor empresarial brasileiro pensar como pensavam antes, porque as chuvas vão mudar de lugar e nossa matriz de energia hidroelétrica já está sofrendo. Temos que ir urgentemente para renováveis, que como país tropical temos um potencial ilimitado para capturar. Imagine uma economia como a da China, movida a energia renovável, praticamente a custo zero. O apelo disso, e as consequências geopolíticas e empresariais, que agora têm data para acontecer, são enormes. Quem aposta em energia renovável tem essa energia para sempre. A Alemanha já fez essa conta: são 20 anos de investimento numa usina nuclear, 80 anos no máximo de utilidade e mais 10 anos para desmontar a usina. Tudo isso pago praticamente pelo Estado. Substituir esse tipo de matriz por uma renovável, que demanda um investimento inicial e depois vai se mantendo a baixo custo, é quase inimaginável.
Eu acho que, em parte, a falta de fóruns de discussões mais frequentes, abertos e concretos sobre essas questões tem a ver com a formação que estamos oferecendo para nossos executivos e especialistas em várias áreas de negócios. No Brasil existem cursos, mas os conteúdos são muito conceituais e pouco práticos ou estratégicos. As vezes são também desatualizados.
Os líderes europeus e americanos, com quem eu tenho mais contato, de todos os tipos, consideram que fazer cursos e saber sobre as tendências e exemplos atuais inovadores é uma prática normal, e fazem porque querem acompanhar as mudanças que acontecem no ambiente dos negócios, mesmo se eles tem posicionamento conservador em relação à velocidade das mudanças. Estou vendo uma onda chegando ao Brasil e vejo que quem tem boia ou prancha não é muita gente. Ainda bem que o Wanderlei Passarella e a CELINT estão lançando um curso que, se der certo, vai ajudar a ensinar muita gente a surfar.
Notas de rodapé:
[1] A Global Reporting Initiative ou GRI é uma organização internacional que apoia governos, empresas e outras instituições no entendimento do impacto dos negócios no meio ambiente, economia e sociedade civil. Para mais informações, acesse https://www.globalreporting.org/ .
[2] Processos multistakeholders se referem a processos que procuram consenso através da discussão entre grupos com interesses diversos. No caso da GRI eram empresas, sindicatos, organizações multilaterais e especialistas.